Um dia de março de 1946, o ‘trem suburbano’, que fazia a rota entre Aracaju e Capela, descarrilou na altura de Pedrinhas, deixando um saldo de 43 mortos e ao redor de 200 feridos. A máquina transportava a diário comerciantes, feirantes, pedreiros, pescadores. Era a maior tragédia ferroviária da história do país.
No dia seguinte, a imprensa local e nacional ecoaria a catástrofe, que ressoaria até num jornal da Austrália.
No calor do sensacionalismo, a mídia do Rio mentia o número de mortos, chegando a falar em 300. Mas, para além dessas fantasias, os jornais sergipanos, um dia depois do acidente, traziam os fatos do ponto de vista dos passageiros. Em ressumo, o trem teve uma parada antes de Riachuelo, para juntar pressão no caldeirão e poder subir a ladeira, mas demorou demasiado; o povo reclamou pela demora, o motorista subiu a ladeira com “muito sacrifício” e, como querendo recuperar o tempo perdido, desceu a encosta de maneira “infernal”, até que deu aquele estalo forte e o desastre aconteceu.
O serviço era explorado por uma empresa privada que, como vinham dizendo os jornais indiretamente, embolsava o dinheiro e não fazia a manutenção indispensável para um veículo habilitado para transportar até 240 passageiros a alta velocidade. Havia tempo que se advertia sobre o estado deplorável das locomotivas e das linhas férreas. Horas depois do acidente, lia-se no Diário de Sergipe que: “tudo indicava que um dia haveríamos de ser colhidos com a notícia de um desastre muito grande em que o povo pagaria sem culpa”.
Como tudo aconteceu no final da tarde, o anoitecer dificultou o resgate. Nas trevas, ouviam-se os gemidos, o choro de dor, sentia-se a pesada presença dos mortos. Alguns aproveitavam o anonimato para livrar os corpos de seus sapatos, relógios e carteiras. Os médicos, logicamente, eram os heróis. “Lutaram ontem contra a morte, contra o tétano, contra a gangrena, contra as infecções malignas, como dantes nunca haviam lutado em terras de Sergipe”, dizia um jornal desses dias sobre sua atuação após o desastre. O Ministro das Relações Exteriores da Colômbia, enviavaum telegrama de condolências.
Quatro dias depois do acidente, a notícia chegava ao Sydney Morning Herald. A essa altura já se falava na tentativa de linchamento do motorista.
Fonte: UFS
A polícia começou o inquérito, de imediato, com ânsia de encontrar um culpado para atender ao clamor popular. As alianças políticas não permitiriam que essa pressão se tornasse contra a empresa concessionária -apesar dos sérios indícios do seu descaso para com a maquinária- e tudo desabaria nas costas do motorista, João Claro.
Perseguido, e com medo de ser massacrado pela turva encendida pelo sensacionalismo da imprensa, o motorista se apresentaria ante o juiz de Laranjeiras para expor sua versão. Antes de sair de Aracaju fez as verificações de rotina, nada anormal; depois, notou que o trem carragava um número anormal de passageiros por causa de uma invasão que houvera em Aracaju; disse, que a parada antes de Riachuelo fora motivada pelo interrompimento de ar ao sistema de freios e que a avaria foi reparada em 15 minutos; reconheceu que os passageiors estavam impacientes, que subiu a ladeira lentamente como sempre e que, ao descer, alguém, “voluntaria ou involuntariamente”, arrancou de novo a mangueira de ar, inabilitando os freios e deixando o trem sem controle. O foguista ratificou o dito por João Claro.
Mas surgiam do inquérito versões disse me disse que, no entanto, eram suficientemente impactantes para enturvar o depoimento técnico do motorista. Um soldado ouvira que na máquina viajavam dois indivíduos que carregavam bebidas alcóolicas. A associação álcool acidente soava contundente.
Ainda mais, dois peritos engenheiros do Estado, parceiro em última instância da empresa concessionária, afirmariam que a maquinária e a linha férrea estavam em perfeito estado e apontariam como causa do desastre a “aplicação brusca de freios num momento em que a composição desenvolvia velocidade superior a admissível”.
Sua Senhoria de Laranjeiras condenaria João Claro baseado nos ingênuos depoimentos dos passageiros: ele quis recuperar o tempo perdido e acelerou. Mas diria isso com esse jeito empolado que têm alguns juízes quando expoem suas barrocas falcatruas: o motorista, nos expedientes, causara o acidente porque “teria acelerado a marcha afim de anular a diferença verificada no horário consequente à marcha lenta que antes desenvolvia dita composição”.
Fonte: Aracaju Saudade
A imprensa se apresaria a culpar João Claro. Teria sido ele capaz de causar a morte de 200 pessoas por conduzir um tem bêbado? Suam imagem pública era deplorável. Seu passao era vasculhado pela polícia, que procurava sustentos para demonstrar que o motorista era o assassino, mas nada achavam. Não tinha processos, tinha uma situação econômica estável, casa própria.
Isso sim, era negro, espírita, militante político, socialista, e tinha sido vereador dez anos antes. Isso era suficiente para que o processo do trem suburbano o perseguisse pelo resto da vida. E nunca se demonstrou nada que não fosse que o trem nesse dia estava lotado e que a empresa concesonária administrava o serviço com enorme irresponsabilidade.
Em Siqueira Campos, seu antigo bairro, tem uma rua com seu nome: a Vereador João Claro.
Fonte: Nos trilhos da morte: tragédia ferroviária, debate judicial e racismo em Sergipe nos anos 40. Luiz Paulo Santos Bezerra, 2017.
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