Claro que quase todo mundo já ouviu falar de cultura popular, uns compreendendo de forma mais ampla, outros como algo que não lhes pertence, ou seja, que está longe das suas vidas, e outros como algo menor, exatamente, por ser popular. Ela nos chega através da música popular, da literatura popular, das danças, da culinária das cantigas de rodas e brincadeiras de criança, e está presente em tudo aquilo que nos remete às lembranças que constitui e faz parte da nossa vida.
O termo popular é bastante amplo e, dependendo do contexto em que é utilizado, pode adquirir significados bem diferentes. A cultura popular representa um conjunto de saberes, incluindo o folclore, o artesanato, as músicas, as danças, as festas, dentre outros. Cultura é uma noção que compreende todas as manifestações de identidade de uma sociedade ou povo. Todos os povos têm cultura, pois é um valor incomparável, ou seja, todas as culturas diferentes têm o mesmo valor.
Já o folclore, utilizado como sinônimo da cultura popular, é composto por um conjunto de lendas e mitos transmitidos entre gerações e representam a herança cultural e social de um povo. A cultura popular é um conjunto de manifestações criadas pelos indivíduos de determinada sociedade, que são passadas, quase sempre, oralmente de geração para geração. Esse tipo de cultura é influenciado pelas crenças do povo, pelos seus costumes e tradições.
Mas o que realmente leva um sujeito a ter certas lembranças de algo distante, mas que, ao mesmo tempo, faz com que ele se identifique e tenha a sensação de pertencimento daquele lugar, daquela cultura? Em Sergipe, quando vai chegando perto do mês de junho parece que algo mágico começa a acontecer. Com a mudança do clima e da estação, surge um envolvimento muito peculiar que parece unir a todos em um mesmo sentimento. A cidade começa a se pintar de várias cores e há uma alegria que fica no ar, no cheirinho da fumaça do milho assado ou cozido, das pamonhas e canjicas, ou das chuvas que são mais frequentes nessa estação. No som das sanfonas que vão surgindo nas praças e no colorido das barracas espalhadas por vários espaços da cidade. Como é gostoso sentir esse acolhimento que paira sobre todos, algo mágico está para acontecer, não se pode traduzir em palavras. Como é bom ser envolvido por este “clima” que tanto encanta o povo da minha terra.
Esse período, chamado período junino, das festas juninas, não só as cidades como o povo também se transforma. Há uma magia nisso tudo que traz consigo uma sensação de união, de uma felicidade que nem cabe no peito. Como sempre fui admirador da cultura popular e amante desse período junino, como quase todos os sergipanos, acredito eu, viro criança novamente. Gosto de ir ao centro da cidade, ao mercado, e ficar observando o movimento, o alvoroço de muita gente nas lojas, as mães segurando seus filhos pela mão e mostrando os lindos vestidos de chita, com suas fitas encantadas. Os olhos das meninas enchem-se de brilho, pois está escolhendo o mais rodado e bonito vestido, sem esquecer as alpercatas de couro, popularmente conhecidas como “priquitinhas”, para dançarem as quadrilhas nas festinhas das escolas e nos forrós espalhado pelas cidades. Para os meninos, as mães pegam calças velhas e as transformam em uma roupa típica junina, enfeitando-as com pedaços de chita colorida para combinar com as lindas bandeirolas que enfeita as salas de aula de todas as escolas do nosso estado. Não há uma escola sequer, em todo o Sergipe, que não se organize para tal festejo.
Tudo parece combinar com o que a terra dá, pois nesta mesma época surge o que temos de melhor na nossa culinária: as comidas de milho. Como são lindos os milharais embonecados, cheios de espigas verdinhas que em breve serão colhidas para se tornarem o rei dessa festa. Esse fruto maravilhoso será o ingrediente principal de pratos deliciosos da culinária desse período: canjica, pamonha, mingau, angu, broa, cuscuz, bolo, milho assado ou cozido. Não importa a forma, todos, de uma maneira ou de outra irão saborear o milho nas noites juninas.
Óleo sobre tela do Artista plástico Augusto Teles, coleção particular de Doutor Ricardo Fakhouri.
A canjica é o prato principal da noite de São João. Tenho muitas recordações de quando a minha mãe estava fazendo essa iguaria na nossa casa, e chamava a gente para mexer o mingau da canjica, até endurecer. Precisa de muita força para mexer essa maravilha da nossa terra. Eu e meus irmãos nos revezávamos com aquela colher de pau bem grande, que minha mãe me mandava buscar emprestada lá na casa da minha Vó Helena. Que lembranças boas chegam até mim agora. A quantidade de canjica era tão grande que quase todas as casas da rua recebiam uma pequena travessa com tal gostosura. Eu gostava mesmo era de raspar a panela ainda quente, e isso era motivo de disputa e uma briga danada com os meus irmãos, pois todos gostavam de raspar o tacho da canjica. A canjica da minha mãe era muito famosa e tinha um sabor inigualável, nunca esquecido. Ela não poupava no leite de coco, sempre a ouvia dizer que canjica boa é com muito leite de coco.
As Pamonhas também são deliciosas, mas que trabalho da peste colocar a massa do milho dentro das palhas bem amarradas, com muito cuidado para não derramar. E tudo era feito em grande quantidade, pois não se podia fazer tais iguarias para uma noite só. Era para comer nas noites dos santos e para mandar para um monte de compadres e comadres da nossa terra. Os bolos de milho, cada um mais cheiroso que o outro, quando desenformados ficavam uma lindeza na mesa posta na porta da rua, para festejar os Santos juninos. Esses bolos eram como se fossem a própria canjica só que assado no forno, ficando mais durinha a massa. Quando cortados pareciam um manjar dos Deuses, derretia na boca. O mungunzá era outro prato também feito de milho, mas não pode ser de milho verde, tem de ser de um milho mais maduro. Já o milho, in natura, existe nessas festividades tanto cozido nos grandes panelões, como também assado nas brasas da fogueira que vai se desfazendo depois do seu grande espetáculo. Toda casa que se preze tem fogueira nos três dias do mês de Junho. Temos no dia 13 a comemoração de Santo Antônio, o santo casamenteiro. Lá na minha terra, Cedro de São João, já vi muitas moças encalhadas recorrerem ao santo casamenteiro para escaparem da solteirice. Para algumas deu certo, já outras, até hoje estão esperando o milagre. No dia 24, comemora-se a noite de São João, vésperas do dia do santo, que é 25 de junho. Esse santo é tão especial aqui em Sergipe que no dia 24 de junho é decretado feriado no calendário. Parece até o nosso “Natal”. Eu mesmo desejo a todo mundo um “Feliz São João”, como se tivesse desejando um feliz natal, de tão importante que é essa data para os nordestinos.
Esse é o período do ano que mais gosto. Sinto-me representado através dessa e nessa cultura. As minhas origens são reveladas quando chega o São João. Não há como não me emocionar com os festejos da minha terra, especialmente os festejos juninos. Eles fazem parte da nossa cultura e estão arraigados em minha alma. Quando saio às ruas e vejo que tudo está bem enfeitado com lindas bandeirolas coloridas feitas de revistas, olho pro Céu e agradeço a Deus por mais um ano. É nesse período que vejo o tempo passar, pois ele traz tudo de bom que vem na minha memória. Minha infância foi feita assim, com festejos juninos. Já no dia 29 de Junho festejamos o São Pedro o porteiro do Céu, com ele encerram-se as comemorações juninas.
É nessa época também que as crianças brincam de coisa como: “bolas de gude”, a terra está meio que molhada, com isso mais propícia ao jogo. O vento fica mais forte, melhor para soltar pipa, e o céu fica bem colorido com elas, cada uma mais linda que a outra, tudo feito ali mesmo, com vários papéis coloridos vendidos na venda de seu Iradí. Como tudo se encaixava na terra, brincávamos de “furão”, era um arme grosso que fazíamos em forma de uma lança que jogávamos no chão para sempre fazer desenhos que fossem vencendo o opositor com seus arremessos certeiros na terra fresca, sempre na sombra de uma bela árvore. Tudo era um motivo para uma brincadeira, pois o clima ameno fazia com que fôssemos para a rua brincar com todos.
As quadrilhas juninas são um show à parte no São João. Toda cidade do Nordeste tem quadrilha junina, seja de grande porte, ou até mesmo uma improvisada com sua família. O que importa é reunir o povo para festejar. Em alguns lugares, essas quadrilhas se profissionalizaram de tal maneira que hoje se tornaram um grande espetáculo, transmitido até pela televisão para outras regiões do Brasil. Cada quadrilha conta uma história, tem um enredo, como nos desfiles das escolas de samba. Os dançarinos vão contando a história e o enredo vai se desenrolando com passos sincronizados e movimentos eletrizantes, numa sincronia muito perfeita. A alegria é contagiante e é perceptível não só nos sorrisos dos jovens dançarinos como também nos movimentos eletrizantes da dança e da música. Além dessas quadrilhas profissionalizadas, temos também as nossas quadrilhas juninas das escolas, que são planejadas e ensaiadas dois meses antes, para serem dançadas nas festinhas das escolas. Tudo é uma grande emoção, pois ali começam as paqueras, os casais começam a se conhecer, a timidez se desfaz, tudo é muito natural. Essas quadrilhas são planejadas para os festejos juninos, as salas de aula são enfeitadas com as lindas bandeirolas de são João cruzando o teto da sala, em uma composição de cores e desenhos levando ao imaginário de cada um o seu “Céu estrelado”. Geralmente a professora é quem organiza, mas a turma toma gosto e se apaixona por tudo. Essa é uma tradição que deve ser preservada e repassada para as gerações futuras. Percebemos que nossos jovens valorizam pouco hoje a cultura popular porque não a conhece e não sabe o seu valor. Esses festejos têm o papel de resgatar esses aspectos da nossa cultura e fazer com que os jovens se apropriem deles e sejam responsáveis pela preservação e transmissão. O espírito junino que predomina nesse período faz com que todos sintam que fazem parte de uma mesma cultura, faz com que haja esses grande identificação cultural. Por isso ela não pode morrer. Deve ser preservada e cultuada.
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Witt, Jon. Sociologia [recurso eletrônico] / Jon Witt ; tradução: Roberto Cataldo Costa ; revisão técnica: Marli Ferreira de Souza. – 3. ed. – Porto Alegre : AMGH, 2016.
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